No início era só um cão. O meu mundo era perfeito. Obediente, fiel, bem comportado, carinhoso. Veio para nossa casa porque tínhamos decidido que era melhor ter um cão porque o Zezinho (o meu filhote, então com 9 anos) necessitava de uma responsabilidade e de entender como é a vida, a morte e aquilo que está entre ambas. No dia a seguir à decisão, a Clarinha (a minha filhota, então com 16 anos) informou que havia uma ninhada de cachorros recém nascidos que iam ser sacrificados porque os donos não os queriam. Disse-lhe que deveria deixar o cachorro crescer um pouco porque senão poderia não sobreviver. Mas no dia a seguir apareceu com o cachorrinho cá em casa com a desculpa que o iam matar. E ficou. Nem andar sabia. Tivemos que lhe dar de mamar. As primeiras vezes ainda fez as suas necessidades em casa, mas rapidamente aprendeu a pedir para ir à rua. Era tal a relação com o Zezinho que era difícil entender se era o cão que julgava que era irmão do Zezinho, se pelo contrário, era o Zezinho que era irmão do cão. De facto, o mundo era perfeito.
Entretanto, a Clara cresceu e foi para Coimbra. Coisas da vida, volta para casa depois de algum tempo. Mas veio com uma deliciosa gatinha de 3 meses. E a paz terminou. A gata também é asseada mas pelo contrário não é nem obediente, nem fiel, nem bem comportada, nem carinhosa, ou antes, só o é quando assim o entende. Sobe para cima da mesa da sala e o cão zanga-se com ela. Sobe para cima dos armários, e o cão zanga-se com ela. Sobe para cima das camas e o cão zanga-se com ela. Afinal, ele sabia as regras muito bem. Ele era um cão, um ser inferior que devia respeito aos seres superiores da família. Mas a gata, que em aparência é mais cão que ser humano, não se comporta como ser inferior. E isso irrita o cão. Não podem estar juntos. Ele quer cheirá-la e ela quer brincar com ele. Ele ladra-lhe e tenta mordê-la e ela tenta arranhá-lo. Falam linguagens incompreensíveis um para o outro.
Na realidade, o cão é isso mesmo: um cão, que obedece e dá a vida pelo seu dono, que aceita as regras existentes sem as questionar. Pelo contrário, a gata é rebelde, não aceita regras ou imposições de outros. Pensa no seu próprio interesse e actua em função disso. Pelo meu lado, eu gostaria que a gata deixasse de ser gata. Sentia-me bem num mundo em que os seres inferiores conheciam a sua posição e a defendiam como correcta. A gata pelo contrário, é uma insatisfeita com a ordem instituída. Digamos que a gata é de esquerda e o cão de direita. Por isso, a gata quer viver a sua vida como acha que esta deve ser vivida e faz para tal; pelo seu lado, o cão defende os seus senhores mesmo que tenha uma vida semelhante à da gata, e não questiona a sua subserviência e existência de segunda categoria. Isto a mim faz-me entender a ira que sentem os senhores deste mundo quando encontram gatos rebeldes e a complacência e agradecimento aos cães sabujos deste mundo, e por isso premeiam-nos com os ossos grandes do seu manjar para que estes o se sintam agradecidos pela ordem natural do mundo e assim o continuem a defender.
Por isso, felinos de todo o mundo, uni-vos.
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