Exmo. Sr. Provedor de Justiça,
Dr. Alfredo José de Sousa
Provedor de Justiça
Rua Pau de Bandeira, 9
1249-088 LISBOA
PORTUGAL
Exmo. Sr. Dr.,
Sou desempregado de longa duração. Há mais de dois anos que a minha busca incessante de trabalho não tem dado frutos. O subsídio de desemprego que recebia terminou no mês passado e, conjugado com o facto de continuar sem trabalho, estou impossibilitado de cumprir as minhas obrigações familiares e de contribuinte.
Considerando que o desígnio do actual Governo é a promoção do desemprego, torna-se de imediato evidente uma consequência directa: o incumprimento deliberado do Artigo 58.º da Constituição da República Portuguesa – Direito ao Trabalho.
Pelo que foi enunciado nos parágrafos anteriores, e tendo em conta o momento actual, a minha família tornou-se num produto do propósito de quem governa o Estado.
Existe uma inegável hierarquia de valores que exige que eu faça o necessário para garantir a sobrevivência física dos meus filhos, dos meus pais, e de mim próprio (o que se aplica a qualquer pessoa que se encontre na minha situação), a qual estará sempre acima das obrigações fiscais e, mais do que isso, encontra-se salvaguardada pelo Artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa – O Direito de resistência.
Devido ao que foi anteriormente dito, venho desta forma declarar que suspendo o cumprimento das minhas obrigações fiscais. Isto consubstancia-se no não pagamento do IVA relativo a trabalho efectuado; no não pagamento de IRS relativo a trabalho efectuado; no não pagamento de IMI relativo à habitação em que vivo e que se encontra hipotecada; e quaisquer outros impostos ou taxas que me sejam exigidos.
Declaro também que o faço contra a minha vontade, sou obrigado a isto por impossibilidade. Assim que houver ao meu alcance uma forma de rendimento que mo permita, procederei ao pagamento do acima indicado na medida das minhas possibilidades.
Sem outro assunto,
Alcides Santos
Desempregado reclama na justiça o direito de não pagar impostos
Entre deixar os filhos passar fome e pagar ao Fisco, um
desempregado decidiu não pagar. Nesta terça-feira entrega exposição ao
provedor de Justiça. Os juristas dividem-se.
Alcides Santos, um gestor de sistemas informáticos
que está no desemprego há dois anos, entrega nesta terça-feira na
Provedoria da Justiça uma carta onde explica o seguinte: vai deixar de
pagar impostos. Nem IMI, pela casa onde habita, nem IRS e IVA, sobre um
biscate que fez há uns meses. Invoca o artigo 21 da Constituição da
República Portuguesa — o artigo que define o Direito de Resistência —
para defender a legitimidade da sua decisão. Alega que acima dos seus
deveres como contribuinte está o dever de não deixar os filhos passar
fome.
O
que pode ser abrangido pelo Direito de Resistência estipulado na
Constituição é algo que, como é norma em matérias legais, divide os
juristas. Como os impostos contestados por Alcides Santos foram
aprovados pela Assembleia da República, e não existindo até agora
qualquer parecer em contrário do Tribunal Constitucional, não se pode
entender que o seu pagamento seja “uma ordem que ofenda os direitos dos
indivíduos, nem uma força que deva ser repelida”, defende o
constitucionalista Tiago Duarte, para quem esta iniciativa está assim
“completamente à margem” do que é evocado no artigo 21 da Constituição.
“E
o que pode fazer uma pessoa que é taxada por um imposto que não pode
pagar, que é obrigada a cumprir o que não pode cumprir, senão
resistir?”, contrapõe o juiz jubilado do Supremo Tribunal de Justiça,
António Colaço.
O juiz entende que esta é uma opção constitucional
para um “desempregado que está no limiar da pobreza, que tem pessoas a
cargo, e que já não pode fazer nada mais para inverter a situação de
penúria em que se encontra”.
Alcides Santos escreve o seguinte no
texto que quer fazer chegar ao provedor Alfredo José de Sousa: “Existe
uma inegável hierarquia de valores que exige que eu faça o necessário
para garantir a sobrevivência física dos meus filhos, dos meus pais e de
mim próprio (o que se aplica a qualquer pessoa que se encontre na minha
situação), a qual estará sempre acima das obrigações fiscais e, mais do
que isso, encontra-se salvaguardada pelo artigo 21 da Constituição.”
“Queria cumprir”
Este
desempregado vive na Moita, com a mulher e os dois filhos, numa casa
que está a pagar ao banco: 400 euros por mês. O prazo do subsídio de
1150 euros que recebia acabou no mês passado. Este mês, diz, a família
tem 600 euros para sobreviver — o ordenado da mulher, que trabalha num call center.
Desse
bolo, 400 vão para pagar a casa e sobram 200 para tudo o resto. Com um
filho de 15 anos, a frequentar o ensino secundário, e outro de 23, que
está na faculdade, Alcides deu consigo, há duas semanas, a olhar para as
contas. Já usa o cartão de crédito para pagar coisas básicas — “Estou a
viver acima das minhas possibilidades porque não quero que os meus
filhos passem fome”, ironiza o informático que, no seu último emprego,
ganhava 2200 euros mensais.
Há uns meses, fez “um biscate” — e
passou o respectivo recibo: cerca de 750 euros. Agora tem que pagar 158
euros de IVA e 79 euros de IRS. Foi para esse recibo que, há duas
semanas, começou a olhar.
Sentado num banco do jardim público que
fica em frente do prédio onde vive, continua: “Quando estamos no
desemprego acontece uma coisa: temos muito tempo”, inclusivamente para
ler a Constituição de uma ponta à outra. “Comecei a olhar para os papéis
e a pensar: eu não consigo pagar isto. Bom... a minha formação é
Matemática. O meu trabalho é arranjar solução para os problemas.” Voltou
a ler a Constituição.
“O Governo não está a cumprir com o artigo
que assegura o Direito ao Trabalho” e que incumbe o Estado de executar
políticas de pleno emprego, argumenta. “Eu sou o produto dessa decisão
do Governo. Por isso não consigo cumprir com as minhas obrigações.
Sempre cumpri, e queria cumprir, mas agora tenho que optar: alimentar os
meus filhos ou cumprir.” Para já, este homem que já esteve associado a
organizações como o Movimento dos Sem Emprego gostaria que o provedor de
Justiça se pronunciasse sobre a sua exposição. O passo que se segue
pode ser informar o Fisco da razão pela qual não vai pagar. Para além
disso, admite ter de informar outras entidades da mesma decisão —
companhia da água, da luz, do gás. Porque acredita que, a manter-se na
situação em que está, acabará por não conseguir liquidar essas facturas.
Um acto de “desespero”
Por
desconhecer a situação e os argumentos exactos apresentados por Alcides
Santos, o constitucionalista Gomes Canotilho escusou-se hoje a comentar
este caso em concreto, mas lembra que o Direito de Resistência,
conforme consignado na Constituição, se reporta à defesa dos “direitos,
liberdades e garantias” do indivíduo, um lote que poderá não abranger o
Direito ao Trabalho que, segundo Alcides Santos, lhe está a ser negado.
A
acção deste desempregado estará talvez mais próxima da desobediência
civil, um conceito que, lembra, nem todos consideram ser coberto pelo
Direito de Resistência. Mas Gomes Canotilho consegue ler nela o
“desencanto e o desespero” face a uma “tributação que atingiu quase
níveis usurpatórios” e que, em conjunto com as taxas que devem ser pagas
por serviços como a água e a electricidade, se impõem como
“intervenções restritivas, que têm de ser justificadas quanto à sua
necessidade, utilidade e proporcionalidade”, defende.
“Qualquer
cidadão pode discordar do que se encontra estipulado na lei, mas não tem
o direito de não a cumprir. Se entende que a lei é inconstitucional tem
meios no ordenamento jurídico para reagir, seja por via do Tribunal
Constitucional, seja por recurso ao provedor de Justiça”, argumenta, por
seu lado, Tiago Duarte, frisando que o Direito de Resistência se aplica
apenas a “situações limite”. Aquelas em que, em simultâneo, a
Administração Pública age contra a lei e em que os cidadãos não têm
tempo útil para recorrer aos tribunais: é o que aconteceria, por
exemplo, se agentes policiais decidissem retirar alguém à força de sua
casa sem qualquer motivo legal, acrescenta.
Já António Colaço
insiste que o Direito de Resistência existe quando se trata de defender
“um bem ou para evitar um mal maior” do que a situação que o motivou.
Acrescenta que no caso do desemprego, por exemplo, justifica-se por se
destinar a evitar o que lhe pode sobrevir: a miséria e actos
desesperados, como o suicídio.
Há algumas semanas, Alcides Santos
preencheu os impressos para pedir o subsídio social de desemprego (que
pode suceder o de desemprego). Espera uma resposta.
Trabalho
estável, tem pouca esperança de arranjar. Quando, há dois anos, o
contrato que tinha terminou, achou que ia arranjar o que fazer, como
sempre tinha acontecido até ali. Mas acabou por ter que se conformar com
a ideia de que “o mercado mudou” e os informáticos já não têm a mesma
saída. “Até porque há miúdos a trabalhar de graça.”
Da sua ideia de resistir é que não desiste. “A minha obrigação é resistir”, escreveu no e-mail que esta semana enviou às redacções.
Os tiranos e o bem comum
O
Direito de Resistência em matéria fiscal foi alvo de um acórdão
aprovado em 2003, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Administrativo
(STA) e tem sido retomado em outras deliberações.
A propósito de
uma taxa que a Câmara de Lisboa pretendia cobrar a uma empresa por um
acto que, entretanto, fora anulado, o STA lembrou naquele seu acórdão
que o “privilégio da execução prévia” (execução de uma dívida antes da
ordem do tribunal) não se aplica aos “actos de liquidação de tributos”.
Mas, nestes casos, defendeu, a oposição dos contribuintes deve ser
feita, precisamente, através do recurso aos tribunais, sendo este
considerado “o meio processual adequado para a concretização do direito
de resistência defensiva”.
Em Portugal, foi a invocação do direito
de resistência, na sua interpretação mais lata, “que legitimou
juridicamente a Restauração do 1.º de Dezembro de 1640”, sustenta Pedro
Calafate, professor de Filosofia na Universidade de Lisboa. No
pensamento dos Conjurados imperava a doutrina escolástica “segundo a
qual Deus é a origem do poder enquanto autor da natureza social do
homem”.
“Mas trata-se de uma origem em abstracto, porque, em
concreto, quem concede ou transfere o poder para os reis é a
comunidade”, continua. Esta transferência é feita “sob condição de
respeito pela justiça e pelo direito fundamental de conservação da
vida”. E, tendo por base esta premissa, “a comunidade ou os indivíduos
directamente ameaçados podem resistir e destituir os governantes”. Ou
seja, no século XVII o direito de resistência era entendido como uma
reacção aos tiranos, categoria onde entrava também quem não governasse
para o bem comum.
Este desempregado recusa pagar impostos Sábado, 30 Março 2013 11:31
Alcides Santos, 46 anos, decidiu deixar de pagar impostos. Mas, ao contrário de muitos que fogem ao fisco, o ex-informático, no desemprego há dois anos, faz questão de informar o Estado. E até invoca a Constituição para fundamentar a decisão.
A carta que na próxima terça-feira vai entregar à Provedoria de Justiça não pode ser mais clara: "Venho desta forma declarar que suspendo o cumprimento das minhas obrigações fiscais, o que se consubstancia no não pagamento de IVA e IRS em relação a trabalho efetuado e no não pagamento de IMI relativo à habitação em que vivo e que se encontra hipotecada, assim como quaisquer outros impostos ou taxas que me sejam exigidos."
Sem trabalho desde fevereiro de 2011, Alcides deixou de receber o subsídio de desemprego no mês passado. Desde aí, os 600 euros que a mulher ganha como operadora num call-center são o único rendimento da família.
O baixo ordenado de Cláudia tem de chegar para pagar os €400 da prestação da casa onde vivem, na Moita (Setúbal), assegurar os estudos dos dois filhos, de 15 e 23 anos, e ainda esticar o suficiente para pôr na mesa comida para os quatro. Só graças ao crédito têm conseguido pagar as contas.
As dívidas não param. Em abril, Alcides e Cláudia terão de pagar cerca de €200 pelo IMI da casa e €237 relativos a IVA e IRS de um 'biscate' que o informático arranjou e que lhe rendeu pouco mais de €750.
Alcides Santos não quis fugir ao fisco. Optou por declarar o 'biscate', preenchendo o chamado ato isolado — uma espécie de recibo verde para trabalhos pontuais. A conta chegou agora e os impostos vão levar-lhe 30% do que recebeu. O problema é que o pouco que ganhou desapareceu de imediato no meio de tantas despesas. Não tem como pagar.
"Tenho de escolher entre pagar os impostos ou dar de comer aos meus filhos. Há uma inegável hierarquia de valores: não posso deixar de assumir as minhas obrigações como pai para cumprir as minhas obrigações perante o Estado", justifica.
"Cada vez mais ilegal"
Na carta que irá entregar à Provedoria de Justiça, Alcides Santos invoca a Constituição para fundamentar a decisão de não pagar os impostos. Mais concretamente, o artigo 21ºB, intitulado "Direito de Resistência", que estabelece que "todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias". É este artigo que sustenta eventuais ações de desobediência civil.
Em seu entender, a política de austeridade seguida pelo Governo tem contribuído para promover o desemprego, atentando, por isso, contra o direito ao trabalho, também previsto na Constituição. "Há mais de dois anos que a minha busca incessante de trabalho não tem dado frutos. Estou impossibilitado de cumprir as minhas obrigações familiares e de contribuinte", frisa, na declaração que elaborou para entregar na Provedoria.
Com o agravamento da crise e o aumento da contestação social, o Direito de Resistência — previsto já na Constituição de 1822 — tem sido cada vez mais falado nos últimos meses. No pós-25 de abril, nunca chegou, no entanto, a ser invocado em tribunal, garante o constitucionalista e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda. "É muito difícil invocá-lo. Especificamente em matéria de impostos, aplica-se apenas no caso de normas inconstitucionais", explica.
Mas há quem defenda que há cada vez mais fundamento para recorrer a este artigo. Num texto de opinião publicado este mês no jornal "Público", António Bernardo Colaço, juiz-conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça jubilado, considera que há bases para o invocar, perante a gravidade da crise que o país atravessa: "Face à adoção contínua de medidas (do Governo) impositivas, improdutivas e prejudiciais a uma vivência humanamente digna (...), a ação de resistência é um ato não violento (...) A resistência ativa ou a desobediência civil é não cooperar com o mal."
Alcides Santos não tem formação jurídica, mas há uns meses decidiu ler a Constituição. Quando 'tropeçou' no Direito de Resistência, o artigo não mais lhe saiu da cabeça. Não tem dúvidas de que os seus direitos, liberdades e garantias estão, atualmente, muito limitados, devido à crise e à austeridade.
"Sem trabalho e sem dinheiro, vivo cada vez mais ilegal. Tenho um carro com 10 anos que precisava de um arranjo grande para passar na inspeção. Como não podia pagar, ando com ele sem a inspeção feita. Vou deixar de conseguir pagar a água, o gás ou a luz e, mais tarde ou mais cedo, a prestação da casa. A crise está gradualmente a pôr-me à margem da sociedade", diz. E acredita que já só lhe resta o direito a resistir.