segunda-feira, 20 de junho de 2011

Ramos-Horta: A economia, os mercados e as democracias

Teria sido possível, como propus há meses, evitar que Portugal fosse
obrigado a pedir ajuda financeira especial.

A situação por que Portugal passa é relevante para todos nós. Se queremos
evitar o pior, devemos extrair dela as lições apropriadas.
Teria sido possível, como propus há meses, evitar que Portugal fosse obrigado a
pedir ajuda financeira especial. Esta foi sempre a minha convicção, baseada em
todos os dados económicos e financeiros credíveis, disponíveis publicamente.
A situação actual poderia ter sido evitada com o apoio do Banco Central
Europeu, se o BCE tivesse sido mais pró-activo e agressivo na compra de dívida
soberana portuguesa, a juros mais justos e sustentáveis. Uma intervenção firme
do BCE teria mandado um sinal poderoso aos mercados, suficiente para impedir
que especuladores se atrevessem a lançar-se como abutres sobre Portugal,
como antes haviam feito com a Grécia e a Irlanda, quando a informação
disponível indica que a situação portuguesa é totalmente diferente das destes
países.
Estranhamente, ninguém questiona a credibilidade de agências de rating cujas
iniciativas foram instrumento do assalto especulativo a economias de alguns
países periféricos. As agências, como Moody"s,Standard and Poor"s e Fitch,
para referir apenas as maiores, não alertaram e, alegadamente, não previram a
débacle dos bancos islandeses ou do sistema financeiro americano, em 2008.
Os ratings destas agências não reflectiram os sinais de especulação em Wall
Street, onde charlatães como Bernard Madoff operaram tranquilamente, anos a
fio, na impunidade. Nem estão em causa, apenas, figuras como Madoff. O
senador Carl Levin, presidente da subcomissão de Investigação do Senado, num
relatório que condensa dois anos de trabalho, propõe que Lloyd Blankfein, CEO
da Goldman Sachs, uma das maiores firmas de Wall Street e do mundo, seja
referido ao Departamento de Justiça para possível processo-crime sobre várias
condutas, incluindo defraudar investidores e mentir ao Congresso.
As agências de rating estão a actuar como manipuladores do mercado e da
opinião pública, fabricando falsas "realidades" com impactos globais.
Os dados objectivos de que dispomos indicam uma situação de Portugal muito
diferente da impressão promovida pelas agências de rating e os especuladores.
Vejamos alguns factos da economia portuguesa recentemente recordados num
importante artigo do professor Robert Fishman, da Universidade norte-americana
de Notre-Dame, publicado no New York Times.
A dívida portuguesa está bem abaixo do nível da de outros países, como a Itália,
que não foram alvo de avaliação alarmista e da especulação dos mercados.
O défice português é inferior ao de vários países da União Europeia e tem-se
reduzido rapidamente, com as medidas tomadas pelo Governo.
Antes dos especuladores provocarem o disparo das taxas de juro para níveis
insustentáveis, a economia portuguesa dava sinais positivos de recuperação.
Portugal recuperou da recessão de 2008 mais depressa do que outros países da
União Europeia e, no princípio de 2010, a sua taxa de crescimento económico
era das melhores entre os países da União.
Com base numa avaliação ponderada da situação, em 2010, tomei iniciativas
com o objectivo de estimular o interesse numa intervenção de países da CPLP,
comprando dívida soberana de Portugal.
A proposta tinha em vista a acção coordenada e simultânea de vários países,
como Timor-Leste e Angola, sob liderança do Brasil, pelo peso financeiro e
político deste país à escala global, adquirindo dívida soberana portuguesa,substancialmente abaixo dos juros impostos pelos mercados.
Uma intervenção coordenada teria ajudado a estancar a hemorragia financeira,
precipitada pelas agências de rating e seus cúmplices especuladores.
Simultaneamente, o BCE devia também actuar mais agressivamente na compra
de dívida portuguesa.
Intervenções coordenadas arrastariam as taxas de juro para níveis sustentáveis,
evitando o envolvimento do FMI. As receitas do FMI, no passado, conduziram
sempre ao empobrecimento dos países onde foram aplicadas e o Brasil foi um
exemplo notório de vítima desse tipo de receitas.
Logo que assumi o cargo de Presidente da República, em Maio de 2007, alertei,
em reuniões do Conselho de Estado e com o Governo, para o que adivinhava
então ser uma rápida depreciação do dólar, que veio, de facto, a ocorrer. Na
altura propus a diversificação rápida de aplicações financeiras dos activos do
nosso Fundo de Petróleo, que estavam investidos exclusivamente em obrigações
do Tesouro dos Estados Unidos. Propus que a diversificação incluísse outras
dívidas soberanas e, provavelmente, aplicações em activos estratégicos, como
energias renováveis, telecomunicações, etc.
Nesta sequência lógica, não é de estranhar que, com apoio do primeiro-ministro
Xanana Gusmão e do ex-primeiro-ministro Mari Alkatiri, homem forte da oposição,
Timor-Leste viesse a investir em dívida soberana portuguesa a cinco ou dez
anos, como um investimento credível, seguro e rentável, a um juro muito abaixo
do imposto por especuladores internacionais. A condição do investimento do
nosso fundo é que as aplicações ofereçam credibilidade e, obviamente, garantam
um retorno a médio e longo prazo que justifique o investimento feito.
Timor-Leste tem presentemente uma posição financeira invejável, apesar dos
enormes desafios de desenvolvimento que temos para resolver, os quais
recordam diariamente que não chega ter riqueza para se construir uma sociedade
de bem-estar, sendo necessário aplicá-la com ponderação e distribuí-la com
justiça.
A nossa economia registou taxas de crescimento de dois dígitos nos últimos
quatro anos e a revista The Economist previa recentemente que Timor-Leste
estará entre os nove países do mundo com maiores taxas de crescimento, em
2011. O Economist Pocket Book de 2010 sobre Timor-Leste refere-nos como o
país do mundo com maior superavit, representado quase 300% do PIB. Somos
também um país sem dívida externa, pública ou privada.
Não obstante, sabemos estar perigosamente dependente de uma única fonte de
receita - petróleo e gás -, e que, para redução da dependência, é necessário
continuar a desenvolver e intensificar estratégias de diversificação da economia,
que só mostrarão resultados significativos a prazo de 10 a 20 anos.
As minhas propostas e iniciativas não nasceram apenas do sentimento de
solidariedade que temos com Portugal. Nasceram também da indignação pelo
comportamento dos senhores que dominam os meios financeiros mundiais.
Eles causaram o colapso económico-financeiro de que o mundo está a sofrer as
consequências e, apesar disso, continuam, com total desplante, a influenciar os
ratings de países e, com o eco dos media, a empolar gravemente e a beneficiar
de situações que eles próprios ajudam a criar.
É óbvio que a adopção do euro por países com níveis de desenvolvimento muito
diferente, na Europa, criou problemas próprios, com perda pelos bancos centrais
nacionais da capacidade de influenciar a política monetária dos respectivos
países, em resposta às necessidades das suas economias. Mas o euro não é a
raiz do problema, como se percebe da crise bancária tornada crise soberana em
países fora da zona euro, como a Islândia.
É também óbvio que Portugal, embora em franca modernização e recuperação
económica, até há pouco tempo, terá de diversificar os seus parceiros
comerciais. A economia portuguesa deve dirigir-se mais agressivamente a
mercados em grande expansão como o Brasil, Angola, África do Sul, Índia, China
e outras economias asiáticas e investir mais em áreas em que tem know-how e
capacidade comprovada - das energias renováveis à engenharia civil,
agro-indústria, vinhos, calçado e outros, para os quais existem enormes
mercados nas economias emergentes.
Mas o que torna a situação de Portugal um assunto do interesse de todos é a
capacidade dos especuladores e da acção não regulada dos mercados imporem
a sua vontade e as suas propostas económicas a países inteiros, contra a
vontade do seus povos e dos Governos democraticamente eleitos. Hoje
acontece com Portugal, amanhã acontecerá com outros países.
Como alerta o prof. Fishman, "no destino de Portugal há um aviso claro". Se
continuarmos a permitir que levem a melhor, os especuladores não vão parar
aqui. Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Prémio Nobel da
Paz (1996), Díli, 15 de Abril de 2011.

Disponível aqui.

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