sexta-feira, 25 de março de 2011

Opinião do insuspeito George Soros

Negócios Online, 24 de Março de 2011, George Soros

A chamada crise do euro é, geralmente, vista, exclusivamente, como uma crise cambial. Mas esta crise é também uma crise da dívida soberana – e mais do que isso é uma crise do sector bancário.
A chamada crise do euro é, geralmente, vista, exclusivamente, como uma crise cambial. Mas esta crise é também uma crise da dívida soberana – e mais do que isso é uma crise do sector bancário. A complexidade da situação gerou confusão e essa confusão tem consequências políticas.
De facto, a Europa enfrenta não só uma crise económica e financeira, mas também, em resultado destas, uma crise política. Os vários Estados-membros definiram políticas muito diferentes, que reflectem os seus pontos de vista e não os verdadeiros interesses nacionais – um choque de percepções que lançaram as sementes de um sério conflito político.
A solução que a Europa se prepara para adoptar é, na verdade, ditada pela Alemanha, cujo crédito soberano é necessário para qualquer solução. Os esforços da França para influenciar o resultado final estão limitados pela sua dependência a uma estreita aliança com a Alemanha devido aos seus "ratings" soberanos AAA.
A Alemanha imputa a crise aos países que perderam competitividade e acumularam dívidas. Em consequência, a Alemanha coloca todo o peso do ajustamento sobre os países deficitários. Mas isto ignora grande parte de responsabilidade da Alemanha na actual crise monetária e bancária, e mesmo na crise da dívida soberana.
Quando o euro foi introduzido, esperava-se que gerasse convergência entre as economias da Zona Euro. Em vez disso, gerou divergência. O Banco Central Europeu (BCE) tratou as dívidas soberanas dos Estados membros como se não tivessem risco e aceitou as suas obrigações governamentais nos mesmos termos. Isto levou os bancos, que eram obrigados a deter activos sem riscos para cumprir os requisitos de liquidez, a ganhar mais alguns pontos base adquirindo dívida soberana dos países mais frágeis.
As taxas de juro baixaram nos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) e provocaram uma bolha no sector imobiliário, numa altura em que os custos da reunificação forçaram a Alemanha a apertar o cinto. Isto causou a divergência na competitividade e uma crise bancária na Europa, que afectou os bancos alemães mais do que os outros.
De facto, a Alemanha tem resgatado os países altamente endividados como forma de proteger o seu próprio sistema bancário. Por exemplo, a enorme dívida soberana da Irlanda surgiu porque as autoridades da Zona Euro, na tentativa de salvar o sistema bancário, forçaram os irlandeses a nacionalizar os seus bancos como condição para os manter à tona. Assim, dado que os mecanismos impostos pela Alemanha protegem o sistema bancário partindo do pressuposto que a dívida soberana pendente é sagrada, os países devedores devem assumir todo o peso do ajustamento.
Esta situação faz lembrar a crise internacional do sector bancário de 1982, quando o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional emprestaram aos países devedores dinheiro suficiente para cobrirem as suas dívidas até que os bancos pudessem reunir reservas suficientes para trocar as suas dívidas incobráveis por títulos Brady em 1989. Isso significou uma "década perdida" para as economias da América Latina. De facto, os planos actuais penalizam os países deficitários ainda mais do que nos anos 80, porque estes vão ter que pagar prémios de risco consideráveis após 2013.
Há algo de incongruente em resgatar o sistema bancário uma vez mais e depois "condenar" os detentores de dívida soberana após 2013 através da introdução de cláusulas de acção colectiva. Além disso, os requisitos de competitividade exigidos pela Alemanha vão ser impostos a países que não estão em igualdade de circunstâncias, o que deixa os países deficitários numa situação insustentável, que poderá mesmo arrastar a Espanha, que no início da crise do euro tinha um rácio da dívida mais baixo do que da Alemanha. Em resultado, a União Europeia irá sofrer algo pior do que uma década perdida; terá que suportar uma divergência crónica, em que os países excedentários avançam e os países deficitários são arrastados pelo peso da dívida acumulada.
A Alemanha está a ser pressionada para impor estes mecanismos. Mas a opinião pública alemã está confusa porque não lhe foi dita toda a verdade. Como as regras fixadas no final de Março criam uma Europa a duas velocidades, é provável que gerem ressentimentos que podem colocar em risco a coesão política da União Europeia.
São necessárias duas mudanças importantes. Em primeiro lugar, o Fundo Europeu de Estabilização Financeira deve servir para resgatar o sistema bancário e também os Estados-membros. Isto permitirá reestruturar a dívida soberana sem precipitar uma crise do sistema bancário. Apesar desta tarefa adicional, a dimensão do pacote de resgate pode permanecer igual porque qualquer montante utilizado para recapitalizar ou liquidar os bancos reduzirá o montante que os governos necessitam.
Colocar o sistema bancário sob a supervisão europeia, em vez de o deixar nas mãos das autoridades nacionais, seria uma melhoria importante que ajudaria a restabelecer a confiança. E teria o mérito adicional de informar a opinião pública alemã dos verdadeiros propósitos da operação de resgate.
Em segundo lugar, para criar condições de igualdade teriam que ser eliminados os prémios de risco dos custos de crédito para os países que cumpram as normas. Isto poderia ser possível através da conversão da maioria da sua dívida soberana em Eurobonds. Cada país teria, então, que emitir as suas próprias obrigações com cláusulas de acção colectiva e só pagaria o prémio de risco sobre os montantes que excedem o limite da dívida pública (60% do produto interno bruto) definido pelo Tratado de Maastricht.
O primeiro passo deveria e poderia ser tomado imediatamente; o segundo terá que esperar. A opinião pública alemã está longe de o aceitar. No entanto, é claramente necessário para restabelecer as condições de igualdade na Europa.
A União Europeia tem sido construída passo a passo. Os seus arquitectos sabiam, à partida, que cada passo era insuficiente e que era necessário continuar em frente. No entanto, tinham a certeza de que quando chegasse a hora de resolver um problema, seria possível alcançar a vontade política necessária.
Desta vez, pelo contrário, as perspectivas de uma Europa a duas velocidades afectarão a coesão política europeia, e em consequência, a capacidade de agir em uníssono quando necessário. Por isso, é necessário reconhecer claramente a necessidade do próximo passo na integração europeia em conjunto com a implementação do mecanismo de solução da crise da União Europeia. De outro modo, os países deficitários não terão esperanças de sair da situação difícil seja qual for o trabalho duro que façam.
George Soros é presidente do Soros Fund Management

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org

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